
Outras
ameças ao Sistema Único de Saúde brasileiro, contudo, estão em
curso. Desde o início do século, os repasses do governo federal estão
estagnados quando se analisa o porcentual em relação ao Produto
Interno Bruto. Equivale a 1,8%. A maior parte dos custos recai sobre
estados e municípios, cujos caixas estão debilitados. Não bastassem os
problemas de receita, há buracos cada vez maiores nas despesas. Propostas em
tramitação no Congresso Nacional minam o financiamento do setor e colocam em
risco a sobrevivência de uma das grandes conquistas sociais da Constituição de
1988.
O
atual subfinanciamento ganhou contornos dramáticos com a aprovação do Orçamento
Impositivo pelo Congresso em março deste ano. Considerado uma derrota para o
governo, o dispositivo cria uma nova lei para os gastos na Saúde, ao atrelar o
investimento da União às receitas correntes líquidas. Por causa da estagnação econômica,
a arrecadação de impostos está em queda e, por consequência, caem os valores
repassados ao sistema.
Por
seu lado, o governo anunciou o bloqueio de 13,4 bilhões de reais do Orçamento
da Saúde em 2015, parte do ajuste fiscal. Apesar de preservar os programas
prioritários, os cortes atingirão áreas de custeio do ministério e emendas
parlamentares. Internamente, a Pasta tenta inserir uma emenda no Projeto de Lei
Orçamentária para que, em caso de queda no volume de recursos, voltar a valer a
regra anterior, baseada na variação nominal do PIB.
A
necessidade de mais recursos para o SUS é admitida pelo ministro
Arthur Chioro. Não há, porém, consenso em relação às fontes. “Esse
financiamento virá do imposto das grandes fortunas ou da taxação das heranças?
Vamos direcionar os recursos do seguro Dpvat? Existem várias possibilidades a
serem discutidas com a sociedade.” Segundo Chioro, novas fontes são necessárias
para “dar sustentabilidade ao sistema”.
A
preocupação do ministro explica-se pela tendência de envelhecimento da
população, o que vai aumentar a demanda por serviços de saúde. Há ainda o baixo
investimento de recursos públicos em comparação com outros países com sistemas
semelhantes ao SUS. Segundo a Organização Mundial da Saúde, em 2013 apenas
6,93% dos gastos públicos brasileiros foram para o setor. No Reino Unido, esse
porcentual é de 16% e na Argentina, de 31%.
Para
o ex-coordenador da área de saúde do Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas, Sergio Piola, a principal causa do baixo investimento é a queda
relativa da participação da União. Hoje, segundo ele, 57% dos recursos provêm
dos estados e municípios, cujos repasses superam o dobro do estipulado por lei.
“Os municípios estão explodindo”, afirma. “Por lei, as prefeituras devem
contribuir com 15% de suas receitas, mas hoje os municípios aplicam, em média,
mais de 20%. Em alguns casos, a participação chega a 30%.”
Chama
a atenção a alta participação da saúde privada. Em todos os países com sistemas
de cobertura universal, o porcentual público no financiamento é superior a 60%.
No Brasil fica abaixo de 50%.
Os
investimentos dos planos de saúde nem sempre se traduzem em qualidade no
serviço. Ao longo da última década, a chamada saúde suplementar liderou o
ranking de reclamações dos consumidores no Procon. Os planos perderam 88% das
ações movidas contra eles na Justiça, por conta de problemas no cumprimento das
obrigações contratuais.
No
Congresso, não há sinalização de aumento de investimentos. Ao
contrário. O presidente da Câmara, Eduardo
Cunha, encampa diversas ações que minam a sustentabilidade da rede pública.
Em 2013, ele relatou a Medida Provisória 627, que anistiava a dívida dos planos
com o SUS em 2 bilhões de reais. O estrago só não se concretizou em decorrência
do veto de Dilma Rousseff.
Cunha
apoiou ainda duas outras iniciativas de fortalecimento do sistema privado em
detrimento do público: votou a favor da MP 656, que permite a entrada de
capital estrangeiro na assistência à saúde, e redigiu a Proposta de Emenda
Constitucional 451, que insere “planos de assistência à saúde” como direitos
dos trabalhadores.
Na
prática, a PEC 451 obriga as empresas a pagar planos de saúde privados para
todos os empregados. Dessa forma, o número de clientes das operadoras de saúde
privada saltaria dos atuais 50 milhões para 71,5 milhões. Na proposta, Cunha
justifica que “saúde é direito de todos”, por isso as empresas deveriam pagar
pelos planos. Segundo críticos, não foi levado em conta o direito à saúde
universal e pública garantido pela Constituição. O cidadão só teria direito ao
benefício se estivesse empregado.
Já em
2015, logo após ser empossado como presidente da Câmara, Cunha impediu a
instalação de uma CPI para investigar os planos, sob a alegação de “falta de
foco” da comissão. Meses depois, um parecer da consultoria legislativa da
Câmara afirmou que o pedido atendia às exigências e era de “relevância
nacional”.
Cunha
recebeu contribuições de campanha e atuou a favor dos planos. Nas eleições de
2014, as doações eleitorais dessas empresas superaram em 32 vezes o valor de
2012. Somaram 54,9 milhões de reais distribuídos a 131 candidatos.
A
relação entre doadores e políticos é forte, segundo a avaliação de
especialistas reunidos no 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. O maior
exemplo é o aparelhamento da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Criada em
2000 para regular a atuação dos planos de saúde, a ANS sempre teve os cargos
estratégicos ocupados por ex-executivos de planos de saúde. Para o médico Mário
Scheffer, professor da Universidade de São Paulo, as indicações atendem aos
interesses dos financiadores. “Em troca de dinheiro nas campanhas, o governo
atende às pressões dos planos pelo aumento dos subsídios, pela desregulação do
mercado e por cargos na ANS.”
Entre
os subsídios citados por Scheffer estão o não ressarcimento das dívidas da
saúde suplementar com o SUS e a renúncia fiscal para a área, estimada neste ano
em 25 bilhões de reais. De acordo com a professora de Economia da Saúde da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lígia Bahia, o calote ao SUS é “imenso
e incalculável”. Os planos não cobrem os tratamentos mais caros e jogam a conta
para o sistema.
Além
do baixo ressarcimento, as altas isenções fiscais concedidas pelo governo
ameaçam a saúde pública, dizem os especialistas. De acordo com as previsões de
2015, apenas as renúncias superam em mais de 10 bilhões de reais os cortes
decorrentes do ajuste fiscal.
O
governo, diz Piola, precisa fazer uma escolha política: ou apoia uma saúde
pública ou um modelo calcado no sistema privado. “Estabelecer um limite à
renúncia fiscal da saúde teria o efeito de mostrar qual a efetiva prioridade do
financiamento. Não há garantia de que os recursos de isenção fiscal iriam para
o SUS, mas certamente haveria maior pressão pela melhora dos serviços
públicos.”
Em
nota, a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos
e Serviços, entidade sindical que representa os planos de saúde no País, afirma
que a saúde suplementar é “um importante fator de equilíbrio no sistema
brasileiro porque diminui a demanda do SUS e traz inovações e qualidade
assistencial”.
A
entidade também diz desconhecer as doações de campanha mencionadas ou que
“alguma entidade tenha tido qualquer influência na indicação de qualquer
dirigente da agência”.
A ANS,
por sua vez, afirma que os integrantes de sua diretoria possuem “ampla e
reconhecida experiência em suas áreas
de atuação”. Quanto aos valores ressarcidos ao SUS, a agência disse não considerá-los baixos e informou que “vem aprimorando e aumentando de forma expressiva os valores arrecadados”.
Fonte: Carta Capital
de atuação”. Quanto aos valores ressarcidos ao SUS, a agência disse não considerá-los baixos e informou que “vem aprimorando e aumentando de forma expressiva os valores arrecadados”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário